Alimentos que nos chegam ao prato não foram feitos para comer, diz a médica Cristina Sales
E se o seu organismo não reconhecer aquilo que você come como um
alimento? Defende-se, inflama-se, fica doente. É o que fazem muitos dos
produtos que levamos à boca. Cristina Sales,
médica e especialista em alimentação, garante que na origem da maioria
das doenças que afetam o homem do século XXI está o que comemos e o modo
como o fazemos. É que os alimentos são veículos de comunicação: dizem
às células como devem comportar-se.
Precisamos de mudar a forma como nos alimentamos?
É obrigatório que o façamos porque a alimentação que a população dos
países ocidentais, incluindo Portugal, passou a fazer nos últimos
cinquenta anos é o que está na origem da maior parte das doenças
endócrinas, metabólicas, autoimunes, degenerativas e alérgicas. As novas
epidemias devem-se sobretudo aos estilos de vida e à alimentação que
fazemos desde o pós-guerra.
A alimentação é decisiva para a saúde e o bem-estar mas está a provocar doenças e a aumentar a mortalidade precoce?
A geração dos nossos filhos terá uma esperança de vida mais reduzida do
que a nossa por causa dos estilos de vida e da alimentação. Primeiro, os
produtos altamente processados pela indústria alimentar conduzem a uma
desnutrição em nutrientes fundamentais e ingerimos uma grande quantidade
de calorias vazias. Segundo, são muito diferentes dos alimentos
originais e o organismo não sabe lidar com eles, não os reconhece como
alimentos. Depois, há uma sobrecarga tóxica inerente à alimentação que
provém dos agroquímicos (da produção), dos conservantes, corantes e
adoçantes que são adicionados para preservar os produtos durante mais
tempo e para os manter bonitinhos.
São alimentos para ver…
Os produtos que nos chegam ao prato foram feitos para vender e não para
comer. Não têm nada que ver com os alimentos que ingerimos e que nos
fizeram viver e sobreviver ao longo de milhões de anos. Esta mudança
ocorreu tão depressa que o organismo não está adaptado para gerir,
digerir e assimilar estes produtos, pelo contrário, vê-os como
substâncias estranhas e reage, inflamando-se.
Como é que podemos livrar-nos dessa teia?
As escolhas alimentares são condicionadas pela publicidade, as pessoas
não são ensinadas a escolher. Quem é que é ensinado a consumir maçãs ou
laranjas? Ninguém. A informação que passa de forma subliminar através
dos anúncios da TV e dos jornais é que se deve beber sumo de maçã e de
laranja. Mas se alguém ler os rótulos das embalagens verifica que contém
imenso açúcar, frutose, acidificantes, etc., e o que falta é a maçã e a
laranja. É preciso informar, ensinar e consciencializar a população.
A atitude da indústria alimentar tem de mudar?
No global sim, mas também depende do que a indústria faz. A conservação
de alimentos através da congelação, por exemplo, é perfeita. Os legumes
congelados são uma ótima opção, por vezes mais económica, e chegam ao
consumidor mais frescos e com mais nutrientes do que os que são mantidos
durante cinco ou seis dias nas cadeias de distribuição. Já quando
falamos de alimentos que têm de levar uma quantidade enorme de aditivos
para serem consumidos – é o caso das carnes de muito má qualidade e dos
aproveitamentos que se fazem dos restos dos mariscos – é diferente.
Sempre que tivermos de dobrar a língua muitas vezes para conseguir ler o
que está escrito nos rótulos é porque não é comida. Não compre. Será
qualquer coisa que do ponto de vista nutricional, químico e metabólico
está muito longe do alimento original.
Está a falar de alimentos que duram ad eternum?
Por exemplo. Como é que duram? Fizeram-se estudos com hambúrgueres e
batatas fritas – uns feitos em casa, com carne picada, e batatas que
foram descascadas, outros com produtos processados e embalados – e
verificou-se que ao fim de trinta ou quarenta dias alguns hambúrgueres
se mantinham iguaizinhos. Não se degradaram, ao contrário dos que foram
feitos em casa, que estavam estragados três dias depois. Ora alguém acha
que uma coisa daquelas pode ser comida?
Quando ingerimos produtos desse tipo como é que o organismo reage?
Defende-se e inflama-se ou agarra naquelas coisas que não considera
importantes e arruma-as nos depósitos de lixo, que são as células
gordas. Estas, além de serem o nosso reservatório de energia, são também
o depósito de substâncias tóxicas que o organismo não metaboliza ou não
utiliza para impedir que entrem nos circuitos mais nobres. Esta
acumulação de lixo cria bloqueios bioquímicos e alterações metabólicas
que impedem as células de trabalhar em condições. Hoje ninguém sabe que
consequências é que isto tem para o cérebro e o sistema imunitário e
para o bom trabalho hepático e digestivo. Os circuitos da toxicidade são
cruzados – se uma pessoa come de vez em quando um gelado, um iogurte,
umas bolachas ou um sumo que tem um determinado corante é uma coisa, mas
se o faz com regularidade, ao fim de seis meses já ultrapassou as doses
suportáveis e entra em sobrecarga tóxica.
E o que é que acontece?
Veja-se o ácido fosfórico, um aditivo que está presente em alimentos de
consumo diário, como os cereais de pequeno-almoço e os refrigerantes.
Quem ingere estes produtos todos os dias, além de ficar com o sistema
acidificado e perder cálcio (uma compensação do organismo que depois
predispõe à osteoporose), também fica numa excitação – o ácido fosfórico
é um estimulante cerebral e é óbvio que uma criança que de manhã come
um prato de cereais chega à escola e não para quieta. O ácido fosfórico
altera o comportamento e em determinadas concentrações é neurotóxico.
Como é que os alimentos atuam no organismo?
Os alimentos servem para construir tecido, osso, órgãos, etc., e para
nos darem energia, mas o que as ciências da nutrição têm vindo a mostrar
é que os alimentos são essencialmente moduladores do comportamento
celular – são informadores das células, dizem-lhes como devem funcionar.
Imagine que tem um prato com uma determinada quantidade de proteínas
(peixe ou carne) e outra de hidratos de carbono. Só a proporção entre a
quantidade de carne e batatas ingeridas vai informar o organismo da
necessidade de produzir uma hormona ou outra, neste caso insulina (que é
a hormona do armazenamento) ou glucagon (a hormona do
desarmazenamento).
Explique lá melhor…
Se comer mais proteínas do que hidratos de carbono vai produzir mais
glucagon e induzir o metabolismo a ir buscar gordura acumulada para
disponibilizar às células, ou seja, vai desarmazenar. Mas se comer mais
arroz, massa ou batatas vai dar uma ordem em sentido contrário, vai
dizer que é precisa mais insulina e vai acumular gordura.
Mas se as pessoas forem ativas podem queimar essa energia…
Isso é outra coisa, o que importa reter é que na proporção hidratos de
carbono/proteínas a quantidade de açúcar que chega aos sensores do tubo
digestivo aciona imediatamente uma ordem de libertação de glucagon ou de
insulina. Se a indicação é libertar glucagon, o organismo vai usar a
gordura acumulada, se a ordem for para libertar insulina, o organismo
vai armazenar gordura. Isto é pura informação.
Quem quer perder peso tem de saber isso, certo?
Se a pessoa tiver consciência da informação que dá ao corpo tem muito
mais capacidade para o modular. Outro exemplo. A leptina, a hormona que
sinaliza o apetite, que depende sobretudo do ritmo solar. Ora, uma
pessoa equilibrada, que durma de noite e trabalhe de dia, produz mais
leptina de manhã (e tem apetite) e ao fim do dia produz menor quantidade
(o apetite diminui). Se uma pessoa comer muito à noite estraga este
equilíbrio e a certa altura está sempre com fome porque inutilizou os
sensores da leptina. Nós somos mamíferos e de noite, quando dormimos,
não precisamos de comer. O nosso corpo tem a sabedoria para sinalizar o
apetite em função da hora do dia – comer muito à noite estraga essa
sinalização, faz ter apetite a toda a hora.
A alimentação é bioquímica?
Os alimentos são veículos de comunicação. Se fizer uma refeição de
gordura saturada – uma sopa com um chouriço e depois um cozido à
portuguesa – dá um sinal à cárdia (esfíncter entre o estômago e o
esófago) para alargar e é assim que ocorrer o refluxo gastroesofágico e
aparece a azia. A gordura saturada é um sinal que se dá à cárdia para se
manter aberta. Se no dia seguinte a mesma pessoa só comer azeite ou
gorduras de peixe não terá azia. Sabe porquê? É que o azeite ajuda a
fechar a cárdia. Este é outro exemplo que ilustra a importância do
conhecimento. Pessoas mais esclarecidas fazem escolhas mais acertadas.
A forma como nos alimentamos dita o comportamento das células?
Quando ingeridas, as gorduras saturadas e as gorduras ómega 6
(provenientes essencialmente dos animais e dos cereais, sobretudo da
soja) são a estrutura a partir da qual as células fazem substâncias
pró-inflamatórias. As gorduras ómega 3 – provenientes das algas e dos
peixes – são as que permitem que as células produzam substâncias
anti-inflamatórias. Se uma pessoa tem uma doença inflamatória (por
exemplo, uma alergia, artrite ou doença autoimune) e come muita gordura
saturada, esta vai funcionar como substrato para a fogueira e agravar o
processo inflamatório da doença que já tem. Ao contrário, se a pessoa
ingerir gorduras ómega 3, vai ser capaz de construir extintores de
incêndio para que as suas células produzam anti-inflamatórios.
Há outros exemplos?
Se uma pessoa tem tendência depressiva porque não consegue produzir
serotonina em quantidade suficiente, deve comer os alimentos que têm os
aminoácidos precursores da serotonina – a carne de peru, por exemplo, é
extremamente rica em triptofano, que é um precursor da serotonina. Se a
pessoa souber isto, no outono, quando o tempo fica mais escuro, porque é
que não há de comer mais carne de peru em vez de carne de vaca?
A alimentação e o processo digestivo podem agravar ou controlar certas doenças?
Sim, se uma pessoa tem uma predisposição genética para a diabetes,
Alzheimer, etc., a doença só vai manifestar-se se o gene for ativado.
Mas o que as pessoas precisam de saber é que os genes também podem ser
desativados – é a modulação genética através da nutrigenética. Como? O
que ativa ou suprime a expressão dos genes é a presença de determinados
fitoquímicos, substâncias que também se encontram nos alimentos.
Podemos dizer que há alimentos anti-inflamatórios?
Claramente. Os que têm ómega 3 – sardinha, cavala e os peixes das águas
frias do Norte. Algumas substâncias vegetais dos legumes (tomate),
frutos (quivi) e especiarias (a curcuma, que confere a cor amarela ao
caril) também têm efeito modulador de alguns genes pró-inflamatórios.
Mas alimentos anti-inflamatórios devem ser consumidos, independentemente
de se ter doença ou não. Hoje sabe-se que um cérebro com Alzheimer já
está inflamado vinte anos antes da manifestação da doença. Todas as
doenças degenerativas começam com processos inflamatórias, as autoimunes
também. Não conhecemos é as causas.
Há substâncias que devem mesmo ser eliminadas da alimentação?
Os aditivos químicos. Falo das substâncias químicas que não são
alimentos, que são usadas pela indústria alimentar e podem ser geradoras
de inflamação em contacto com o organismo. A vida corrente não nos
permite evitar todos os aditivos, mas se estivermos despertos para esta
realidade teremos mais atenção, faremos escolhas mais saudáveis e
ingerimos menores quantidades.
E as gorduras?
As gorduras ómegas 6, que se encontram nas margarinas e nos óleos e que
são provenientes da soja, do milho e do amendoim, são claramente
pró-inflamatórias. Precisamos de ómega 6 no organismo, mas em
quantidades muito reduzidas. O problema é que a cadeia alimentar atual é
geradora de uma alimentação extraordinariamente rica em ómega 6 e pobre
em ómega 3. Basta pensar que, dantes, as galinhas e as vacas comiam
erva, agora comem rações provenientes da soja; os peixes comiam algas,
agora comem rações também com soja. Os produtos alimentares que usamos
são essencialmente da linha produtora de ómega 6.
Nos supermercados temos centenas de alimentos à escolha. Precisamos de tanta coisa?
Não precisamos de tantos produtos alimentares, necessitamos é de maior
diversidade alimentar. Essas centenas ou milhares de produtos que vemos
nas prateleiras são provenientes de quatro ou cinco alimentos – cereais,
lácteos, açúcares e gorduras – e da indústria de processamento. Se
olharmos para a quantidade de legumes, frutos, oleaginosas e peixe que
as pessoas comem no dia a dia verificamos que não há variedade
alimentar, as pessoas comem quase sempre o mesmo. Já pensou na variedade
de saladas que é possível fazer? Mas se perguntar a alguém qual é a que
come diz-lhe alface e tomate.
[…]
De que produtos podemos e devemos mesmo prescindir quando vamos às compras?
Devemos tirar os refrigerantes, cereais com açúcar, pastelaria, óleos e
margarinas – para cozinhar devemos usar o azeite, só azeite. Todos os
refrigerantes são um estrago de dinheiro – as pessoas devem beber água.
Os cereais com açúcar (os de pequeno-almoço e as bolachas) também são
prescindíveis – devemos escolher cereais completos, integrais, que até
são mais baratos. Compare-se o preço de uma caixa de cereais de
pequeno-almoço com o de um pacote de flocos de aveia, que são altamente
nutritivos. A aveia é muito mais barata e muito nutritiva.
Mas comprar carne magra e peixe gordo, frutos e hortaliças é muito mais dispendioso…
Mas há estratégias que podem ser implementadas. Uma é comprar carne de
melhor qualidade e comer menos quantidade e menos vezes. É preferível
comer carne três vezes por semana em vez de comer carne gorda todos os
dias. Além disso, toda a gente ganha se fizer uma alimentação
vegetariana dois dias da semana e em vez da carne comer, por exemplo,
arroz de feijão ou grão-de-bico com massa. Se se acrescentar hortaliças,
ervas aromáticas e azeite, podemos dizer que são refeições perfeitas.
Menos carne, mas de melhor qualidade; mais peixe (incluindo cavala e
sardinhas, frescas ou em conserva de azeite) e ovos (podem ser
consumidos três ou quatro por semana) são opções a privilegiar.
Não retira massa, arroz ou batatas ao seu carrinho de compras?
Não, mas reduzo as quantidades ingeridas. No prato devemos ter pequenas
porções de massa, arroz ou batatas e maior quantidade de hortaliças,
legumes e leguminosas.
Fala-se muito na responsabilidade
social da indústria farmacêutica, que ganha dinheiro à custa do
tratamento dos doentes. E quanto à responsabilidade social da indústria
alimentar, que ganha dinheiro atirando-nos para a doença?
A indústria alimentar está a fazer maus alimentos, mas a verdade é que
as pessoas só compram o que querem. Sei que quanto menor é a informação
maior é a permeabilidade ao marketing, mas o caminho também se faz
através da informação dos cidadãos e da sua responsabilização. Custa-me
imenso ver nas caixas de supermercado que as pessoas aparentemente mais
pobres também são as que levam os carrinhos repletos de produtos inúteis
e nefastos para a sua saúde. É preciso repensar a política alimentar e
inovar.
QUEM É CRISTINA SALES E O QUE É A MEDICINA FUNCIONAL INTEGRATIVA?
A medicina que Cristina Sales exerce dá pelo nome de medicina
funcional integrativa – reúne diferentes disciplinas, profissionais e
recursos terapêuticos, é centrada na pessoa e procura entender onde
estão os desequilíbrios que desencadeiam a doença. Para uns, trata-se de
uma abordagem vanguardista, mais adaptada aos pacientes, ao tratamento e
controlo das chamadas doenças da civilização. Para outros, a prática
médica de Cristina Sales ainda gera alguma desconfiança. Quem não receia
são os doentes que a procuram – sobretudo pessoas que vivem com doenças
crônicas (alergias, enxaquecas, fadiga crônica, doenças inflamatórias,
endócrinas, metabólicas e autoimunes) e que não encontraram resposta
satisfatória para os problemas que as afetam. Uma consulta com a médica
do Porto dura uma hora e não se marca de um dia para o outro. Porque os
pacientes já são muitos e porque as palestras e conferências em que
Cristina Sales é oradora convidada também são frequentes.